sábado, 26 de julho de 2014

TERRA SEM LEI - Capítulo 03





No terceiro capítulo eu relato o fato que vai mover toda a história daqui em diante: a covarde execução da família Silva pelo capangas de Carlos Lucena. É nesse momento que conhecemos o cruel Zé Caolho e seu bando de jagunços. Muitos dos que leram o livro me acusaram de ser tão cruel quanto os personagens e alguns até sugeriram que o episódio é uma apologia à violência. No entanto minha intenção foi meramente mostrar aos leitores a realidade do nível de violência e a forma extremamente radical com que os coronéis(ricos fazendeiros) do interior do nordeste resolviam suas questões nas primeiras décadas do Brasil republicano. Devo admitir que posso ter exagerado um pouco nos detalhes e na frieza com que os algozes agem, mas foi a melhor forma que achei de contar a estória com a intensidade que a mesma merece.

Confiram a íntegra do capítulo. Espero que gostem.




3

CHACINA


Já é mais de meio-dia, o sol está literalmente ardendo, o calor insuportável do sertão nordestino que abrasa as terras de João Silva faz com que todos os animais de seu pequeno sítio procurem abrigo nas sombras de alguma árvore seca ou paredes da casa e do velho depósito de ferramentas. O vento está forte e, vez por outra, levanta pequenas nuvens de areia.

Felícia sai de dentro de casa e chama em voz alta:

– Sr. João! O almoço está na mesa!

João surge de trás de um monte de mato ressecado que ele acabara de colher. Muito suado, ele coça a barba e responde:

– Já estou indo, Felícia.

Lá na cozinha da casa, a mesa já está pronta, os cinco filhos do casal Silva estão cada um com seus pratos esperando o chefe da família chegar para então começarem a satisfazer a sua fome. João chega, olha para todos, solta um leve sorriso e avisa:

– Não esperem por mim, ainda vou tomar um banho.

Todos começam a comer numa festa só, enquanto João entra no pequeno banheiro para tomar seu banho.

Pouco tempo depois, as crianças descansam do almoço, inclusive o caçula Joãozinho, que dá um cochilo no colo de sua irmã Marina. Teresa observa João devorar sua comida e comenta:

– Pelo jeito você gostou da comida de hoje.
– Não sei quem cozinha melhor, se é você ou é Felícia – responde João comendo uma coxa de frango.

Em seguida, Teresa se volta para Felícia e ordena:

– Felícia, vá à cacimba e traga água fresca pro João, pois a que tinha aqui já acabou.
– Sim senhora – responde de prontidão a negra e imediatamente pega um balde e parte em direção a cacimba, que fica lá no meio do terreiro da casa.

João continua devorando o frango, sempre observado por Teresa, e as crianças continuam descansando, quando de repente o silêncio é bruscamente interrompido por um forte barulho, como se fosse o de um tiro de algum rifle. Muito espantados, os garotos despertam rapidamente de seu descanso. João e Teresa se levantam da mesa meio atônitos. Marina observa Felícia escorada no peitoril da cacimba, cambaleando até soltar o balde e cair no chão. Teresa grita:

– Felícia!
– Felícia! – gritam também os garotos quase que em coro.

João olha espantado para aquela cena, ele não entende o que houve com a velha mulher. Os garotos, com exceção de Joãozinho, correm para ver o que acontecera com Felícia. Ao chegarem junto à negra, José a desemborca: os olhos dela estão abertos, mas estáticos, e não respira mais. Marina observa o sangue que escorre de um buraco no tórax de Felícia, e logo eles concluem que aquele buraco fora feito por uma bala, o que explica o barulho ouvido por todos. Judite começa a chorar e se abraça com o cadáver, mas os garotos também sabem que quem disparou o tiro ainda deve estar por perto, e assim como acertou a pobre mulher, pode fazer o mesmo com qualquer um deles. Porém, antes deles se darem conta do perigo a que estão sujeitos, ouve-se outro tiro: o medo toma conta de todos, e João agora tem certeza de que ele e sua família estão sendo atacados covardemente. Paulo cai sem vida no chão. João se desespera e sai gritando em direção ao filho:

– Paulo! Paulo! Meu filho!

Teresa fica imóvel, tamanho o choque de ver seu filho ser assassinado ali na sua frente, sem ela poder fazer nada. Joãozinho se agarra fortemente com sua mãe, enquanto que seu pai chega até Paulo e o abraça mesmo todo ensanguentado, tendo seus irmãos ao lado chorando com desespero.

Ouve-se mais dois tiros: José e Judite caem um sobre o outro. Teresa grita em prantos estarrecidos e João grita mais ainda:

– Não! Não! Pelo amor de Deus! Não!

Marina se levanta vagarosamente. Mesmo em estado de choque, de tanto pavor, ela sabe que pode ser a próxima vítima. João olha para todos os lados e não vê ninguém, somente nuvens de areia que sobem da terra pela força do vento.

Teresa joga Joãozinho pra dentro da casa e grita para Marina:

– Corra minha filha! Corra!

Ouvindo o apelo da mãe, Marina corre em disparada rumo à entrada da casa, julgando ela que ali estaria segura, mas novamente um tiro certeiro atinge de cheio a moça indefesa, que cai no pé da porta, quase aos pés de Teresa, que se ajoelha chorando e gritando junto ao corpo de sua filha. Uma dor e uma tristeza insuportáveis invadem o coração de João e de Teresa, que veem seus filhos serem dizimados em segundos, sem saberem por quem e por que, e o que é pior, sem poder fazer nada, visto a brutalidade e a covardia com as quais age o assassino.

Joãozinho não entende nada do que está acontecendo, ele apenas fica mais aterrorizado a cada instante, a cada tiro, ficando quieto e escondido debaixo da mesa da cozinha, sendo que dali de onde está, dá pra ver tudo o que acontece lá no terreiro: ele vê sua mãe ajoelhada junto ao corpo de Marina na entrada da casa, João também ajoelhado junto ao corpo de Paulo lá no meio do terreiro, e bem próximo, os corpos de José e Judite um sobre o outro, além do corpo de Felícia perto da cacimba. São cenas fortes demais pra um garoto de dez anos.

A nuvem de areia sob o forte vento, não deixa que as vítimas vejam seu algoz. Outro tiro é ouvido, desta vez João é quem cai no chão sangrando muito no abdômen e se remoendo de dores. Desesperada, Teresa corre pra junto do marido, onde ela se agarra com ele chamando-o:

– João! João!

Teresa nota que ele ainda respira, daí levanta devagar a sua cabeça e a põe em seu colo. Chorando muito ela olha para o seu marido e lamenta:

– Ó meu João! O que fazem com a gente? Que desgraça é essa que caiu sobre nós João?

João olha para Teresa e tenta falar, mas as dores que ele sente não deixam.

O vento ainda é muito forte, João e Teresa olham para todos os lados e não conseguem ver ninguém devido às nuvens de areia que continuam se levantando da terra. Joãozinho permanece embaixo da mesa da cozinha, ele não tem coragem para ir até onde estão seus pais. Os tiros parecem ter parado, será que o assassino foi embora? Ou deu só uma trégua? Eis que João e Teresa veem surgir vagarosamente através daquelas nuvens de areia, quatro homens, que avançam a passos contados em sua direção. João olha bem para aquelas quatro criaturas com a certeza de que são eles os responsáveis por tudo o que ele está passando naquele momento.

Joãozinho também já consegue ver aqueles homens que se aproximam mais e mais de seus pais, e ali naquele instante o jovem garoto sabe que está prestes a perder o resto de sua família.

Ao chegarem mais perto, João observa que todos estão muito bem armados com rifles, vestem botas e roupas rudimentares e grandes chapéus para proteger-lhes o rosto do sol ardente. Um deles está todo vestido de preto e usa um tapa-olho direito, percebe-se claramente que ele é o líder do grupo. Ele fixa bem seu olhar frio e cruel em João, ainda deitado sobre o colo de Teresa. Nenhum deles solta uma só palavra, apenas observam aquela cena horrível do sofrimento de João e sua esposa, curvados ali em sua frente naquele chão em brasa. No entanto, para os quatro assassinos, certamente aquela cena é motivo de orgulho, já que foram eles que a promoveram. Teresa fixa bem seu olhar no homem de preto e chama seu marido ainda chorando:

– Olhe João, olhe, é Zé Caolho! Foi ele João!

Joãozinho vê e ouve tudo, e seu pavor aumenta ainda mais quando ele vê o dito Zé Caolho erguer seu rifle e apontá-lo para sua mãe. Seu pavor é tão grande que não consegue se mover e nem falar, mas ele consegue ouvir claramente quando o homem profere suas primeiras palavras para seus pais:

– Creio que deveriam ter aceitado vender essas porcarias de terras.

Os olhos de João e Teresa se enchem de ódio, ali naquele momento eles entenderam tudo o que estava acontecendo: como eles deixaram claro que nunca venderiam as terras a Carlos Lucena, a única maneira que o fazendeiro encontrou de adquiri-las foi eliminar os donos, e era justamente o que Zé Caolho e seu bando estavam fazendo no presente momento. Teresa não se contém de tanta raiva e explode a sua cólera:

– Maldito seja Carlos Lucena! Que ele queime no inferno por to...

Teresa é bruscamente calada por uma bala que lhe atravessa o crânio, e cai sem vida junto a João, que mesmo sem falar dá pra ver em seu semblante que ele não acredita que aquilo esteja acontecendo.

A essa altura, depois de presenciar tantas atrocidades, o coração de Joãozinho está em pedaços, o seu choro de medo e desespero é incontido.

João ainda respira e olha fixamente pra Zé Caolho. Aquele que trouxe a desgraça à sua família tem o sangue frio como gelo, seu olhar é capaz de aterrorizar qualquer homem, ou até mesmo a um animal. O herege olha pra João e pra todos os corpos que ali estão, em seguida vira-se pra um de seus comparsas e afirma:

– Jeremias, vá lá dentro e veja se tem mais alguém. Se tiver, tu já sabe o que fazer.

Atendendo a ordem, o tal Jeremias parte de imediato pra dentro da casa, e Joãozinho se aterroriza ao ver que o homem vem em sua direção. Já quase sem forças para se mover, João consegue se virar para sua casa, reúne todo o restante de força que ainda possui e solta um aviso desesperado ao seu filho caçula:

– Joãozinho! Corra! Fuja daí!

Nesse momento João recebe um chute covarde nas costas, e rola pelo chão quente com mais dores do que nunca. Joãozinho sai rapidamente de baixo da mesa e corre rumo a uma sala que dá para os fundos da casa, mas Jeremias vê o garoto e vai atrás dele. Na sala, o garoto avista a janela que dá pra fora da casa pelos fundos, ele corre em direção a ela, pois imagina que se conseguir sair ele terá boas chances de escapar pelos matos secos, os quais ele tão bem conhece. Porém, quando o menino tenta pular a janela ele é ligeiramente agarrado pelo bandido, que o pega pela gola da camisa e o joga no chão com violência. Apavorado, Joãozinho chora muito e implora a Jeremias:

– Por favor, seu moço, não me mate!

Jeremias fixa o seu olhar no de Joãozinho. É um olhar frio de um criminoso que apavora uma criança assombrada e indefesa. Mesmo assim, o homem aponta seu rifle para o garoto, que chora e implora:

– Não me mate! Não me mate!

De repente, num breve momento de pena ao ver a situação daquele menino, Jeremias amolece um pouco o seu coração e pergunta:

– Quantos anos tu tem?
– Dez – responde Joãozinho com a voz trêmula de medo.
– É a mesma idade do meu bruguelo – comenta o indivíduo soltando uma cínica risada.

Lá fora, João ainda se dobra de dores pelo chão quando ele ouve o tiro que vem de dentro de sua casa. Ele olha bem para o interior da casa e chora muito. Naquele instante ele tem a certeza de que Joãozinho também morrera.

Dentro da casa, na sala, Jeremias assopra a fumaça que sai do cano de seu rifle devido ao disparo que acabara de dar. Joãozinho está com os olhos fechados como se estivesse dormindo, mas eis que se abrem. Ele não acredita que ainda está vivo, o buraco da bala está na parede ao lado, bem próximo a ele. Jeremias guarda seu rifle e afirma:

– Olha pirralho, pula a janela e se manda daqui, pra bem longe ouviu?
– Sim! Sim senhor! – responde o garoto ainda apavorado.
– Mas pra bem longe mesmo, pois se eu te vir em qualquer lugar, aí tu morre. Entendeu pirralho?
– Sim senhor! – responde novamente Joãozinho agora com a certeza de que pelo menos vai escapar naquele momento.

Imediatamente o garoto sobe a janela e pula para fora da casa, daí ele corre abaixado para dentro do matagal seco, rumo a um morro que fica exatamente nos fundos da casa.

João observa a volta de Jeremias pra junto do bando, que ao se aproximar de seu chefe afirma:

– Tá feito, Zé.

Zé Caolho solta um leve sorriso, sem dúvida ele está muito satisfeito com sua chacina, quem sabe ele até está se divertindo com tudo. João olha para os quatro algozes de sua família, frisa-os bem e com alguma força que ainda lhe resta, ele avisa:

– Desgraçados! Um dia vão pagar por tudo que fizeram aqui.

Sem dizer uma só palavra, Zé Caolho aponta seu rifle para João e friamente dispara o tiro de misericórdia. João agora se estira no chão e não mais respira. É o fim da família Silva.

Zé Caolho dá uma ajeitada em seu chapéu e no tapa-olho, em seguida vira-se para seus capangas e ordena:

– Queimem tudo!

Obedecendo a ordem, os três homens rapidamente fazem tochas e as acendem, daí começam a atear fogo em toda a casa de João Silva. O menino Joãozinho, único sobrevivente da chacina, graças a um breve momento de lucidez de Jeremias, quem sabe tocado por Deus, está agora escondido no alto do morro por entre o matagal seco. A casa pega fogo rapidamente e logo já está toda em chamas, enquanto Zé Caolho apenas observa tranquilamente a conclusão de seu serviço.

O vento ainda está muito forte, e lá de cima do morro, Joãozinho vê os quatro assassinos sumirem na nuvem de areia, indo embora. Ao garoto sobrevivente resta apenas contemplar aquela terrível visão que ficará marcada para sempre em sua memória: a casa em que ele viveu até ali, em chamas, os corpos de seus pais e irmãos sendo também consumidos pelo fogo, os animais do sítio todos correndo pra longe das labaredas, enfim, o seu lar, sua família e sua vida destruídos. O garoto acabara de passar por momentos que seriam capazes de transtornar qualquer adulto em sua fase mais madura, quanto mais uma criança de dez anos de idade. Que triste.

Joãozinho olha para o outro lado, ao invés daquela terrível cena, ele vê o horizonte do sertão onde crescera, e só em seu pensamento ele toma a sua primeira grande decisão na vida: é para aquele horizonte imenso que ele deve seguir. E assim o faz, deixando para trás aquele horrível episódio que acabara de acontecer e a lembrança de uma família feliz, de uma vida alegre ao lado de seus pais e irmãos, o que nunca mais terá novamente.


*****



Na próxima semana:
 Capítulo 04(comentado)


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Luis Boto

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